segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Surpresas
A chave não quis entrar. Não rodava. Cada chave tem seu jeitinho. Assim, devagar, abriu. Entrou no apartamento abafado e jogou a bolsa num canto. Abriu a janela. Então era aqui que ele passava suas noites solitárias. Cozinha, banheiro, quarto, sala. Uma certa bagunça, mas até que nem tanta.
Duas horas. Chegou cedo. Era esperar. Desta vez estava com coragem, diria tudo. Ligou o rádio: Roberto Carlos detalhando...que ansiedade essa espera.....Pepino e Champagne. Bethania. Djavan. Braços estendidos. Um facho de luz. Um lobo correndo em círculos? O sol, o brilho, a força.
Não disseram nada. Se amaram olhos nos olhos até cansar, silêncio, entre beijos. Numa ilha. Tudo era um parênteses, fora da vida dos dois.
 E o assunto voltou: quando você vem pra cá? Por que não larga logo se não o ama, comigo será tudo diferente, seremos felizes, tanta coisa que a gente ainda não fez....Palavras mais que repetidas, mas alguma coisa  era nova. Uma descoberta que podia ser usada para alcançar a liberdade. Era certo. Havia uma outra na vida do marido. Já tinham sido vistos juntos várias vezes. Claro que era verdade. Por que não aproveitar e jogar toda culpa nele? Ia ser fácil.
Teve ódio daquela verdade e do homem que a dizia, contente, animado, achando que aquilo era tão bom. Odiou a sua alegria. Tá bom, vou pensar como vou fazer tudo. O importante era empurrá-lo cada vez mais para a outra. E então, nós dois.
Saiu do apartamento. Entrou no carro e, enquanto guiava, começou a imaginar cenas. Seu marido e a outra juntos. Viu-os nos gestos do amor, ele e a moça. Tentou figurar os dois nas mais variadas variações sobre o tema. E foi ficando excitada, e correu para casa.
Naquela noite a surpresa fez a loucura dos dois no quarto do amor doméstico.
Nunca mais viu o amante. 

Papéis Avulsos

Camisa Vermelha
Foi antes do tédio e da descrença. Todos os dias íamos paras a escola. De bonde. Mãos dadas. Esperança luzindo nos olhos do menino que você ficou. E as pessoas que a gente até já conhecia de vista todo dia. Amor garoto que sumiu. Houve um tempo em que pensei nas crianças te chamando de papai. Depois não. Foi acontecendo. Vieste de novo hoje e vejo aquelas tardes e manhãs que se foram, que enfim estão lá no passado e me esperavam: idas e vindas, ciúmes, lágrimas espantadas e a camisa branquinha que tinhas tanto cuidado em não sujar.
Sábado à tarde Elvis Presley na vitrola, rock de rabo de cavalo, batom e saia rodada. Letras de música em inglês trocadas "from me to you with love", Natg King Cole (too young to love?).
À noite, num vãozinho da varanda, beijos na boca e as mãos(tão frias!) buscando os seios de menina.
Domingo, matinê no cinema do bairro. Me entregava nos teus dedos, líquida.
E a bicicleta. Passeios pelas ruas então tranquilas. E foi a bicicleta que levou embora o sonho.
Agora a rotina segue, nesse tempo de agora, tão diferente do "nosso".
Enfim consigo encontrar-te. Porque durante todos esses anos, toda vez que me lembrava, só conseguia ver o grito desesperado e a tua camisa ficando vermelha, ficando vermelha, vermelha.................